LITERATURA NEGRA OU LITERATURA FEMININA? LITERATURA NEGRA E FEMININA.
A despeito das obras Cada Tridente e O Tambor serem consideradas Literatura Negra ou literatura feminina, seguramente há evidencias de suas peculiaridades, estas que podem ser observadas na ressonância das narrativas e principalmente pelo lugar de fala do sujeito enunciador ou talvez pelos lugares de fala deste sujeito. A pluralização destes lugares não é aleatória, estou falando de uma voz feminina e de uma voz negra. Vozes duplamente subalternizadas.
O que se observa é que ambas as vozes procuram “atingir” uma sociedade fundada no machismo e no etnocentrismo. No caso do sujeito feminino, a quebra de paradigmas reside na presença da mulher na literatura, fato que por si só já subverte valores dominantes. Porém a diferença, sobretudo, está no tema usado por estas mulheres, pois segundo Coelho (1993, pp. 22, 24):
Na nova ficção feminina, o amor [...] deixar de ser o tema absoluto para ceder lugar às sondagens existências, ao ludismo da invenção literária, às fantasias intertextuais ao questionamento político à redescoberta do mito ou da história [...] desenvolvendo-se em diferentes chaves, essa produção ficcional mais recente revela uma mulher que interroga as realidades: que busca e luta com a palavra no enlaço de um novo conhecimento do mundo e dos outros.
Esta observação de Coelho leva-me a ressaltar a inexistência de um “discurso essencialmente feminino”. Afinal, já estão cada vez mais explícitos os papéis e representações que as escritas femininas, nos últimos anos, vêm reconfigurando, seja por meios sociais, políticos, históricos e/ou culturais. Isto, sem dúvidas, serve para criar uma literatura mais polifônica, multifacetada e democrática. SegundoHollanda (1998, p.12):
À distancia, a produção poética contemporânea se mostra como uma confluência de linguagens, um emaranhado de formas e temáticas sem estilos ou referências definidas. Nesse conjunto, salta aos olhos uma surpreendente pluralidade de vozes, o primeiro diferencial significativo dessa poesia.
Estas confluências mais significativas no âmbito da literatura estão ligadas ao crescente interesse desde a década de 70 pela produção literária feminina, mas também da Literatura Negra. Segundo Kennedy (1988, p.219), neste período o Brasil presencia um crescimento explosivo na criatividade literária, bem como o aparecimento de inúmeros escritores negros. Retifico que não foram apenas escritores, uma vez que o movimento feminista está ressurgindo com força significativa. Apareceram também, no cenário da literatura brasileira, escritoras das quais muitas eram negras. Segundo Barbosa (1985, p.51),
[...] a existência de uma literatura negra é posterior à existência de uma consciência negra [...] A arte do oprimido, quando este se dá conta do seu papel como agente histórico é, em sua essência, transformadora, pois o oprimido é o agente social que não tendo mais nada a perder não se vê comprometido inteiramente com esta sociedade e assim é o único que pode transformá-la. Desse desejo de transformação que surge a transformação das formas e como conseqüência a forma de uma “literatura negra”.
Para Coelho (1993, p.12) em Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo:
[...] a preocupação especial que a literatura feminina vem despertando nos leitores e nos estudiosos se liga ao fato de que a metamorfose-em-marcha no mundo de hoje tem na mulher a pedra-de-toque.Já se sabe à saciedade que entre as grandes revoluções inovadoras a que nosso século vem assistindo e que arraiga na transformação do mundo feminino é das mais decisivas,pois atinge as bases do próprio sistema de relações vigentes no mundo civilizatório que herdamos.
Desta forma, por que não analisar os textos de autoria de Cidinha como uma literatura feminina, feminista e negra? Uma vez que as mulheres negras começam a alcançar espaços na literatura feminina e também feminista, por se proporem no âmbito da Literatura Negra, a quebra da hegemonia masculina, Figueiredo (2008) afirma, “sexo, raça e classe são subprodutos de um mesmo discurso que visa legitimar práticas de dominação masculina racial e de classe, nas sociedades ocidentais”. Todavia, Cidinha da Silva deixa a entender em vários momentos de suas narrativas que estes indivíduos que sofrem injustiças sociais, se negros, têm essas práticas indiscriminadamente mais acentuadas; se negra e mulher se acentuam mais ainda.
Entendo que enquanto literatura das margens, a obra de Cidinha da Silva é parte de uma presença feminina na literatura brasileira geral, e esta literatura pode assim ser descrita como uma literatura feminista e também negra, uma vez que a autora deixa a entender que é consciente do que se refere Saffioti (2002) quando diz que “[a] ordem das bicadas na sociedade humana é muito complexa, uma vez que resulta de três hierarquias/contradições: de gênero, de etnia e de classe”. Quando caracterizo a escrita da autora para uma Literatura Negra/feminista, parto do princípio de que ambas são marcas identitárias afirmativas que se pretendem, através do fazer ficção, permitir “novas dicções de gênero e raça, mais soltas e mais experimentais” por meio da literatura.
Fabiana Campos